"O drama
de toda mãe é saber se ela foi boa o suficente, e ser boa
significa ter o filho encaminhado na vida, agindo dentro das fronteiras do
caráter, que ele encontre um grande amor (não tão grande como ela, claro) e que
ele seja feliz. Do momento em que engravida até o último suspiro, uma mãe
jamais terá certeza de que deu o melhor de si e que agiu corretamente na
maioria das situações difíceis que se apresentaram a ela. A única coisa que uma
mãe sabe é que amou profundamente aquele ser, mais às vezes
do que a si própria.
Uma mãe com
um bebê no colo ignora o que o futuro lhe reserva: se ela terá leite
suficiente, se o pai estará presente ainda que eles se separem, se as mães dos
amiguinhos dirão que ele é um anjo de comportamento, se o filho vai andar cedo
ou tarde, se tirará boas notas na escola, se vai sofrer na mão das mulheres, se
vai arrumar um bom emprego, se não vai sofrer nenhum acidente, se vai telefonar
quando sair para beber com os amigos, se não sucumbirá às glórias e às ilusões
deste mundo. Uma mãe nasceu para ver o coração quicando da boca ao estômago,
mas pelo menos ele sempre estará cheio.
Aquele ser indefeso na
maternidade pode se tornar um médico competentíssimo, um empresário de sucesso,
um advogado cheio de ideais, o presidente do Brasil ou até um perigoso
traficante de drogas. Por acaso a mãe do Polegar imaginava que seu bebê um dia
seria preso no Paraguai, acusado de chefiar uma das maiores quadrilhas do Rio
de Janeiro? Se soubesse, ela o teria abandonado no hospital?
Pois me
chocou muito o recente caso dos pais que abandonaram seu bebê com Síndrome de
Down num hospital do Rio de Janeiro. Ter um filho com a síndrome não é fácil: a
sociedade vira as costas para essas crianças, que precisam lutar muito para
descobrir meios para sobreviver num mundo que infelizmente não foi feito para
elas. Mas suas deficiências terminam aí.
Não sei o
que motivou esse casal a cometer tal ato abjeto, se foi o desespero, a
inexperiência, um momento de insanidade. Mas nenhuma das alternativas o isenta
do fator crueldade e do desprezo pelo que é humano. Eles se ativeram a um dado
genético e mental de seu bebê, e não se deram conta de que colocar um filho no
mundo, seja ele deficiente ou não, é um gesto de loteria. Pior do que ter uma
criança com Síndrome de Down é criar um filho sem caráter.
Eu tive a
sorte de conviver com uma irmã com Síndrome Down, a Emi, que acabou se tornando
uma filha e infelizmente se foi no ano passado. Por ter sido abençoado com sua
presença iluminada, sempre achei curioso dizer que alguém era especial, excepcional
ou deficiente. No meu repertório, essas palavras nunca existiram, porque as
diferenças entre os seres humanos sempre foram encaradas por mim e por minha
família como uma coisa natural, como ter cabelo preto ou louro, encaracolado ou
liso, ter a sobrancelha fina ou mais grossinha. Em casa, essas bobagens jamais
tiveram importância, simplesmente não existiam, como não existem até hoje.
Em algum
momento da vida, todos nós acabamos por enfrentar alguma deficiência,
algum obstáculo. Seja para comprarmos o carro que desejamos, construirmos a
casa com que sempre sonhamos, precisarmos de óculos para ler ou assistir a um
filme, encontrarmos energia para brincar com os filhos depois de um dia de
intensa labuta.
Só fui
capaz de entender isso por causa da minha irmã, que realmente era especial,
porque ninguém me amou de uma maneira tão profunda, pura e irrestrita, fazendo
com que eu e a todos que a cercaram, em seus 53 anos de vida, nos sentíssemos
verdadeiramente únicos. E ela também era excepcional, porque, no mundo de hoje,
esse amor tão cristalino, tão generoso e sem limites infelizmente virou uma
exceção. E excepcional vem dessa palavra: exceção.
Emi ganhou
várias medalhas esportivas, foi pintora e grande pianista, fez aula de inglês e
recebeu várias faixas de Miss colecionadas nas excursões que fazia pelo Brasil
e pelo mundo. Tinha planos de se casar com o Rei Roberto Carlos, mas depois
mudou para o Daniel. Gostava de sorvete de abacaxi, sundae de caramelo, banana
split, mamão amassado de sobremesa. Era muito amiga dos amigos, dava tchau para
todas os desconhecidos da rua como se fosse atriz de cinema, pedia
por favor e dizia obrigada para tudo, adorava cachorrinhos (mas só os
pequenos), e ouvia música o dia inteiro. Fossem Natal, aniversário ou Dias das
Crianças, não queria carrinhos, bicicletas ou viagens: só gostava de ganhar
canetinhas de tampa branca e cadernos para colorir. E usava meias pretas com
tênis brancos. Um dia eu perguntei: “por que você só usa meia preta”? E ela:
“porque é moda”.
Outro
detalhe fundamental: ela tinha a idade que queria. Passou muito
tempo com 28 anos, depois aceitou fazer 32 e, nos últimos anos, estava com algo
entre 36 e 39 anos. Em sua última festinha de aniversário, já meio fraquinha,
alguém comentou que ela estava completando 53. E, quase sem voz, ela corrigiu:
39. Essa também era a Emi, que tampouco nunca confiou em escadas rolantes.
A melhor
definição que ouvi sobre Emi e todas as pessoas iguais a ela veio de minha mãe:
são anjos
de asas curtinhas, que precisam da nossa ajuda para voar. Mas
acontece que todos nós nos vemos, mais dia menos dia, com as asas curtinhas,
porque viver não é brincadeira. E são pessoas únicas como ela que fazem o
movimento contrário, e nos ajudam a voar, num gesto de abundante generosidade.
Tenho muita
pena desses pais que abandonaram seu bebê Down no hospital. Eles jamais
conhecerão a dor de enfrentar o mundo para torná-lo um lugar mais digno para os
nossos deficientes. E tampouco conhecerão a delícia de acordar melhor com as
lições que eles nos ensinam todos os dias.
Eis a única
coisa que uma mãe pode esperar de seu filho: que ele a surpreenda."